Não há neutralidade sobre a democracia. Por Thomas Traumann

Em O Globo

O Brasil se tornou os Estados Unidos com dois anos de atraso. Em 2016, Donald Trump se elegeu presidente nos EUA com uma combinação de nacionalismo tosco (“Faça a América grande de novo”), antipolítica (“Vamos drenar o pântano da corrupção em Washington”) e mentiras (denúncias forjadas de um esquema de pedofilia envolvendo a cúpula do Partido Democrata). Em 2018, Jair Bolsonaro venceu mimetizando a fórmula do bufão americano. Em 2020, Trump perdeu a reeleição e instigou seus seguidores a tentar tomar o poder à força. Dois anos depois, Bolsonaro ameaça um golpe preventivo cuja justificativa é o medo de ter menos votos que o adversário. A diferença de Trump, no entanto, Bolsonaro tem o apoio do Exército.

Saber o que o futuro reserva permite que as pessoas se preparem. Se for uma inundação, os moradores das regiões de risco devem deixar suas casas. Se for uma tempestade, os motoristas são avisados a evitar as ruas que alagam. Mas como uma sociedade se prepara contra a ameaça de contestação da vontade da maioria dos eleitores?

Primeiro, dando nome às coisas. Colocar suspeição sobre as urnas eletrônicas não é ponto de vista. É golpismo. Bolsonaro engaja seus seguidores contra a Justiça Eleitoral porque todas as pesquisas mostram sua derrota no segundo turno. Desacreditar as urnas e inventar uma conspiração entre os ministros do TSE e STF, a oposição e a mídia é a tentativa de repetir o discurso antissistema que o ajudou em 2018. Desta segunda vez, como farsa.

Chamar as coisas pelo nome é o primeiro passo. O segundo é diferenciar quem achaque flores e ervas daninhas são a mesma coisa. Lançada pela Faculdade de Direito da USP, a Carta às Brasileiras e aos Brasileiros é uma linha divisória que não permite titubeio. É possível a um torcedor do Botafogo estar indiferente a um Flax Flu, assim como alguém pode não se importar se um diz bolacha e outro diz biscoito. Mas não existe neutralidade sobre a democracia. Constranger quem considera um estorvo o respeito ao resultado das urnas é uma diferença civilizatória.

No último sábado, dia 30, na convenção do partido Republicanos, Bolsonaro anunciou que o tradicional desfile militar na Avenida Presidente Vargas, Centro do Rio, na manhã do Dia da Independência, será transferido para a tarde, em frente ao Forte de Copacabana, onde ele pretende discursar contra a Justiça Eleitoral.

-Às 16h do dia 7 de setembro, pela primeira vez, as nossas Forças Armadas e as nossas irmãs, forças auxiliares, estarão desfilando na Praia de Copacabana, ao lado do nosso povo -anunciou.

Mesclar militares com militantes é o sonho dourado do bolsonarismo. Simbolizaria a fusão das vontades do soldado e do cidadão, ilusão que alimentou quarteladas e golpes por todo o século XX.

No ano passado, Bolsonaro sequestrou as comemorações do Dia da Independência para ameaçar ministros do STF e do TSE. Por pouco, seus seguidores não invadiram o prédio do STF. Um ano depois, sob risco real de ser defenestrado do Palácio do Planalto, o grau de virulência e intimidação bolsonarista aumentou. Levar soldados armados para o que, na prática, será um comido pela reeleição é dar aos bolsonaristas a sensação de estar acima da lei, e ao Exército a de estar à margem dela.

Para evitar que o 7 de Setembro de Bolsonaro vire uma versão tropical do 6 de Janeiro de Trump, é preciso deixar claras desde já as punições a quem tentar um golpe de Estado. Nos EUA, quase 200 invasores do Capitólio foram condenados pela tentativa de melar a eleição de 2020, e as investigações em curso ainda podem impedir a tentativa de Trump de retornar à Casa Branca.

No Brasil, a linha entre a defesa legítima de uma candidatura e o atentado à vontade popular precisa ser delimitada. Bolsonaro faz a retórica pública de levar a eleição na marra porque, até agora, ninguém o ameaçou de volta. É hora de a sociedade, a Justiça e os políticos que acreditam na democracia afirmarem em voz alta que não haverá anistia para quem atentar contra a democracia.

Thomas Traumann é jornalista e pesquisador da FGV/DAPP

Enviado para Combate Racismo Ambiental por Isabel Carmi Trajber

Ilustração: Mihai Cauli

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